A comissão de juristas criada para elaborar um anteprojeto de lei sobre o processo estrutural aprovou nesta quinta-feira (31) o relatório final do desembargador federal Edilson Vitorelli. O texto estabelece regras gerais para a tramitação desse tipo de processo, que já é aplicado nos tribunais brasileiros mesmo sem uma legislação específica. O documento deve ser entregue ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, até o dia 12 de dezembro.
A expressão “processo estrutural” surgiu entre as décadas de 1950 e 1970 nos Estados Unidos. O termo se refere a demandas que chegam ao Poder Judiciário quando políticas públicas ou privadas são insuficientes para assegurar determinados direitos. Nesses casos, a discussão é transferida para a Justiça, que usa técnicas de cooperação e negociação para construir uma solução efetiva para o problema.
Um exemplo de processo estrutural é o acordo judicial para a reparação de danos provocados pelo rompimento da barragem de Brumadinho, que matou 272 pessoas e gerou uma série de impactos sociais, ambientais e econômicos em Minas Gerais. Em vez de vários processos individuais, o caso foi reunido em um só procedimento. O valor total das indenizações superou os R$ 37 bilhões, um dos maiores acordos de reparação já firmados pelo poder público.
O relator da comissão, desembargador Edilson Vitorelli, defendia que o texto não trouxesse uma definição explícita sobre o que é o processo estrutural. Mas a maioria da comissão decidiu pela adoção de um conceito para o tema.
A redação aprovada classifica processos estruturais como “ações civis públicas destinadas a lidar com problemas estruturais”. Os problemas estruturais, por sua vez, “são aqueles que não permitem solução adequada pelas técnicas tradicionais do processo comum, individual ou coletivo”. Eles se caracterizam por elementos como: multipolaridade;
impacto social;
natureza duradoura das intervenções necessárias;
complexidade;
existência de situação grave de contínua e permanente irregularidade, por ação ou omissão; e
intervenção no modo de atuação de instituição público ou privada. Consenso e diálogo
O anteprojeto estabelece como norma fundamental do processo estrutural o diálogo entre o juiz, as partes e demais interessados — entre eles os potenciais impactados pela decisão. O texto prevê a participação de todos os grupos impactados, mediante a realização de consultas e audiências públicas e outras formas de participação direta e indireta.
Além da ênfase na consensualidade e na participação ampliada, o processo estrutural deve observar a capacidade de atuação de cada instituição e os limites financeiros das partes. O objetivo é que a solução construída durante o processo contemple a todos os envolvidos. 
Função do juiz
A função do magistrado ganha contornos diferentes nesse método de solução de conflitos. Nos processos tradicionais, ele apenas emite julgamentos, que devem ser obrigatoriamente seguidos pelas partes. No processo estrutural, cabe ao juiz articular soluções entre os envolvidos e elaborar um plano de trabalho para acompanhar o cumprimento da decisão.
No processo estrutural, o magistrado pode delegar funções decisórias e executivas para outras entidades. Por exemplo: no caso de uma infração ambiental, o juiz pode pedir que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) oriente a elaboração de um plano para corrigir o problema.
Técnicas processuais
O objeto do processo estrutural, uma vez definido, só pode ser alterado por acordo entre as partes. Segundo o relator, “isso impede processos estruturais que se eternizam porque estão, a cada momento, mudando de enfoque”. “Por outro lado, considerado um objeto dado, metas e indicadores podem ser modificados, tanto por acordo, quanto por decisão (sempre observado o contraditório), uma vez que a realidade é rica e pode contraindicar as providências inicialmente definidas”, explica Vitorelli.
Estabelecido o caráter estrutural do processo, o juiz pode, com a participação das partes e, preferencialmente, com o consenso entre elas, adotar uma série de técnicas processuais. Ele pode, por exemplo, chamar pessoas ou entidades dos grupos impactados pelo litígio; realizar reuniões ou consultas técnicas e comunitárias; e promover audiências públicas.
O magistrado também pode designar audiências para o saneamento de problemas ou a organização compartilhada do processo e montar o calendário de audiências para tratar de aspectos específicos. O anteprojeto também oferece ao magistrado a opção de designar perito, consultor ou entidade que possa contribuir com o esclarecimento das questões técnicas, além de intimar pessoas com contribuições ou poder decisório sobre as questões.
Para assegurar a publicidade e a transparência dos casos, a Justiça pode determinar o uso de plataformas de tecnologia para prestação de informações sobre o andamento do processo. O juiz também pode adotar medidas de cooperação judiciária e interinstitucional para a gestão de processos individuais ou coletivos relacionados ao objeto da controvérsia.
Plano de atuação
O plano de atuação estrutural é a ferramenta usada para que se alcance o resultado final do processo. Ele deve conter as seguintes informações: diagnóstico do litígio;
metas específicas e aferíveis, descritas de forma clara;
indicadores quantitativos e qualitativos de alcance das metas;
cronograma de implementação das medidas;
prazos, parâmetros ou indicadores para determinar o encerramento do processo;
definição dos responsáveis pela implementação das medidas;
metodologia e periodicidade de supervisão da implementação e de revisão das medidas; e
indicação do envolvimento ou não de recursos do orçamento público e do modo como serão alocados. Para que a ação não se alongue demasiadamente, o que geraria mais insegurança jurídica, o anteprojeto deixa explícito que “o monitoramento da implementação do plano de ação será encerrado, com a extinção do processo, quando demonstrada a adoção das medidas necessárias à proteção progressiva e concreta dos direitos violados”.
Âmbito de aplicação
As novas regras devem ser aplicadas aos processos estruturais de natureza trabalhista, administrativa ou de controle. No que couber, elas também podem ser aplicadas ao processo penal, especialmente nos casos que envolvam a necessidade de reorganização institucional em virtude da aplicação de medidas advindas de feitos criminais; nos habeas corpus coletivos que ensejem medidas estruturais; e nas execuções penais que as requeiram.
Revisão das decisões
Por se tratar de ações com vários interesses em conflito, os processos estruturais costumam ter difícil resolução. O anteprojeto reconhece essa dificuldade e prevê a revisão de decisões do plano de trabalho que possam ter sido inicialmente equivocadas.
Pelo texto, as metas e os indicadores da atuação estrutural podem ser alterados pelas partes, de comum acordo, ou por decisão judicial, com base em fatos posteriores, em alterações da realidade do conflito ou em novas informações ou diagnósticos que se tornem conhecidos no curso do processo. Além disso, as decisões judiciais e os acordos ficam passíveis de revisão ou ajustes, mediante provocação de qualquer interessado, em razão de fatos posteriores, bem como de novas avaliações acerca dos efeitos da implementação do plano, até mesmo nas fases de cumprimento ou execução. A lógica é que a ação estrutural não seja estanque, mas dinâmica e permeável às mudanças da realidade concreta do objeto do litígio, tipicamente complexo e passível de implementação gradual de melhorias.
Eficiência
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) devem criar uma base de dados sobre acordos e processos estruturais, finalizados e em andamento, de acesso público, com disponibilização das principais peças processuais e de sumários em linguagem simples. Os dois órgãos devem dispor ainda de mecanismos para avaliar a atividade prestada por magistrados e membros do Ministério Público em processos estruturais. O mesmo vale para a Defensoria Pública e a Advocacia Pública.
Se uma causa for julgada como muito complexa, o juiz pode ser liberado de suas outras funções para se dedicar somente a um processo estrutural. Os tribunais podem estabelecer um órgão de assessoramento ao juiz. O mecanismo prevê a designação de determinados agentes públicos para a melhor solução do problema estrutural.
Políticas públicas
De acordo com o desembargador Edilson Vitorelli, o processo estrutural não é um mecanismo de intervenção em políticas públicas. “As políticas públicas hoje sofrem intervenção no processo coletivo e, muito especialmente, sofrem intervenção em razão do ajuizamento de milhares de ações individuais, que tramitam em todas as comarcas do país e que, à conta-gotas, interferem grandemente sobre diversas políticas públicas, notadamente de saúde, educação e assistência social”.
Ele defende que, se o processo estrutural for utilizado no contexto de políticas públicas, a intervenção tende a ser menos gravosa e mais respeitosa à separação de poderes e à autonomia administrativa do que as demais modalidades de atuação jurisdicional, hoje ainda prevalentes.
“A edição de uma lei sobre o processo estrutural tende a fomentar uma condução mais participativa, democrática e construtiva dos processos judiciais, permitindo que as violações recorrentes a direitos sejam endereçadas de forma mais ordeira e com a colaboração de todos os envolvidos”, argumenta o relator.
A comissão
A comissão de juristas, formada por 22 especialistas, é presidida pelo subprocurador-geral da República Augusto Aras. O colegiado foi instalado em junho pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. O anteprojeto aprovado pelo colegiado deve ser transformado em projeto de lei, analisado pelo Senado e pela Câmara dos Deputados.
— O Brasil carece de um processo estrutural, no bojo de uma situação nacional de grande gravidade. Seja em Maceió, com a Braskem, seja no Rio Grande do Sul, com as enchentes, seja no caso de Mariana [MG], que ainda não se concluiu, seja no sistema penitenciário. Em tantos segmentos de carência, que exigem direitos fundamentais cumpridos, garantidos e assegurados — disse Augusto Aras.
O relatório de Edilson Vitorelli foi elaborado a partir de emendas propostas pelos membros da comissão. O colegiado promoveu três audiências públicas com especialistas e representantes da sociedade. Fonte: Senado Federal (http://www12.senado.leg.br/noticias/temas/justica/pagina/1)